O ABANDONO AFETIVO E SEUS EFEITOS JURÍDICOS
Independentemente das inúmeras mudanças que a estruturação das famílias vem sofrendo ao longo dos anos, é incontestável a importância dos cuidados que uma criança necessita receber para a formação da sua personalidade, da sua saúde psicológica e do adulto que irá se tornar.
Aliás, o desenvolvimento de qualquer ser humano é consequência da instituição familiar a qual ele pertence, uma vez que é no convívio ou na falta dele que a criança forma as suas convicções acerca do mundo, assimila os valores éticos e define o seu caráter. E a responsabilidade de transmissão desses preceitos influenciadores é inteiramente dos pais.
De acordo com especialistas da área da Psicologia, as atitudes de “não cuidado” desenvolvem sentimentos de impotência, perda, desvalorização como pessoa e vulnerabilidade. Diante dessa afirmação, é possível apontar alguns casos muito comuns capazes de elucidar o tema: O genitor não guardião arcando somente com o pagamento da pensão alimentícia, enquanto o outro, sobrecarregado, cumulando as funções de pai e mãe, com o fito de cobrir a ausência daquele que não está cumprindo o exercício do poder familiar, qual seja, o dever de convivência, criação amorosa e participativa com o filho; O genitor deixa de procurar o filho nos dias agendados para visitação, não dando qualquer satisfação da sua ausência que, na maioria das vezes, apenas objetiva atingir pelos filhos a sua ex-mulher, movido por ressentimentos da separação.
À vista disso, quando os pais deixam de exercer esse dever de cuidado para com sua prole, contrariam direitos assegurados às crianças e adolescentes corroborados pelos princípios constitucionais da dignidade humana, da solidariedade, da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e adolescente.
Além dos princípios norteadores, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil determinam a obrigação de cuidar, inclusive possibilitando o dever de reparação de dano, tema bastante controverso no atual Direito de Família.
É indiscutível que nesse ramo do Direito há um campo vasto para que os particulares elejam a melhor forma de viver em família, preservando-se aos participantes dessa relação a decisão sobre o formato de convivência e definição sobre o seu planejamento familiar. Porém, existe previsão legal expressa para a predominância da proteção do interesse de crianças e adolescentes, de idosos e de diversos vulneráveis, de sorte que nas questões relativas a essas pessoas, há que se permitir a atuação do poder público, mesmo no ambiente familiar, com o intuito de preservar seus interesses juridicamente garantidos.
Nesse sentido, se vislumbra maior possibilidade de intervenção estatal especialmente quando envolvida a defesa dos interesses de crianças e adolescentes, com observância dos dispositivos legais atinentes a estas pessoas em estado de vulnerabilidade, como o dever de cuidado. É nesse aspecto que adquire relevo a temática do abandono afetivo, pois trata de questão inerente à intervenção pública, justamente por envolver os direitos e deveres perante uma criança ou um adolescente.
Cumpre registrar que esta atuação seria pontual, restrita aos casos de omissão total do dever parental e que cause prejuízos efetivos à pessoa vulnerável que é objeto de proteção.
Ressalta-se que nas situações de abandono afetivo, o interesse lesado é notoriamente extrapatrimonial, isto é, relaciona-se com a dignidade da pessoa humana (envolve a esfera existencial, pessoa da vítima), podendo gerar tanto efeitos de natureza patrimonial como de natureza não patrimonial.
É importante salientar que o objetivo da indenização resultante desta responsabilidade civil não é obrigar o pai a amar o filho, como alguns legisladores entendem, mas sim de cuidar dos interesses da criança e de compensar o intenso sofrimento causado pela rejeição paterna, dano que ultrapassa a esfera patrimonial. A indenização ainda possui caráter punitivo pela conduta dos pais ausentes, com a finalidade de desestimular a sua prática na sociedade.
Insta admitir que o reconhecimento da possibilidade de responsabilização civil do denominado abandono afetivo é mais um sinal da relevância que a temática da afetividade alcançou no Direito Brasileiro, processando-se a partir daí o aprofundamento dos temas conexos.
Resta dizer que o Direito não é e nem pretende ser a solução para todos os correntes impasses familiares, cuja composição certamente transcorre por diversas outras áreas as quais não se pretende ignorar ou minorar. Os dramas do abandono afetivo, muito mais do que reparados, devem ser evitados, tarefa que envolve diversas questões metajurídicas.
Escrito por:
Sabrina Maia de Oliveira do Amaral
Advogada especialista em Direito de Família e Sucessões.