DESJUDICIALIZANDO O INVENTÁRIO
Presentes herdeiros capazes e de acordo entre si, o Código de Processo Civil permite que sejam realizados o inventário e a partilha extrajudicialmente, por meio de escritura pública, sendo tal escritura um documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. Ressalte-se que a partilha dos bens entre os herdeiros é que será realizada por escritura pública, não se tratando, portanto, exatamente de um inventário, mas do que chamamos de um arrolamento.
A partir da Lei nº 11.441/2007 o nosso ordenamento jurídico vem admitindo que esses atos sejam realizados extrajudicialmente, e foi replicado pelo Código de Processo Civil de 2015, e regulamentado pela Resolução nº 35 de 2007 do Conselho Nacional de Justiça.
A norma em apreço acompanha a tendência de desjudicialização de determinados atos jurídicos que não necessitam de intervenção obrigatória do Judiciário, buscando-se com isso lhes conferir maior celeridade e economia de esforços. Temos como exemplo, o divórcio consensual, que apenas em algumas situações é que se obriga buscar a via judicial. Apesar de o diploma processual civil garantir que, em regra, o procedimento judicial deveria ser encerrado nos doze meses subsequentes ao seu início, enfrentamos uma grande lentidão. Insurge-se então o inventário extrajudicial, mecanismo que confere aos jurisdicionados o acesso à justiça, enquanto acesso à solução justa para suas pretensões, mas de forma mais eficaz, e por isso deve ser preferencial.
Realmente, a necessidade de acesso ao Poder estatal para solucionar conflitos de interesses, pacificando com a justiça, se mostra essencial para a vida em sociedade, porém, as maneiras de solução desses conflitos podem se diversificar de uma sociedade para outra. Até porque existem sociedades em que uma lide pode ser correntemente solucionada por um mecanismo externo ao uso do Judiciário, enquanto em outras, o Judiciário se revela imperioso para o alcance da justiça.
Assim, é importante enfatizar que o tabelião, ao lavrar a escritura de partilha extrajudicial, não é um mero executor da vontade dos herdeiros e de seus advogados, mas sim um agente que recebeu delegação estatal para cumprir múnus público, com fé pública nas suas declarações, logo, cumprindo uma função de acesso à solução justa no inventário e partilha extrajudiciais. Dessa forma, o tabelião poderá até mesmo se recusar a lavrar a escritura, caso verifique que o negócio jurídico a ser celebrado está eivado de algum dos vícios de vontade por exemplo.
Um possível benefício que poderíamos citar para o inventário judicial é a gratuidade da justiça, decorrente do direito fundamental à assistência judiciária gratuita, apregoado no artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal. Contudo, igualmente na esfera notarial é possível obter a gratuidade para a realização da escritura, bastando que aos interessados declarem a impossibilidade de arcar com os emolumentos.
Outro benefício que os herdeiros possuem diz respeito à flexibilidade de local para a celebração da escritura pública por arrolamento. Veja que o inventário judicial possui regras próprias de competência territorial, sendo a principal o foro do domicílio do autor da herança. Já no caso da escritura pública, não há uma exigência de sua celebração em foro específico, podendo os herdeiros fazê-lo em qualquer tabelionato de notas.
E mais. Se houver companheiro que não foi declarado por escritura pública pelo autor da herança ou que não teve reconhecimento judicial dessa condição, à priori, ele não poderia ser contemplado com a declaração de sua meação na escritura pública de inventário e partilha, correto? Acontece que sendo todos os herdeiros capazes e concordes no inventário extrajudicial, nada impede que reconheçam na própria escritura a condição daquele companheiro e de sua eventual meação, evitando-se assim a necessidade da longa via judicial.
Apesar de nos depararmos com esses valorosos benefícios para a realização do inventário e da partilha por escritura pública e, portanto, evitar-se sobrecarregar o Judiciário com questões que não exijam a sua participação, o legislador conduziu a escritura como uma opção aos herdeiros. Destarte, nada impede que os herdeiros ingressem com arrolamento sumário perante o juízo competente ao invés de celebrarem escritura pública de partilha, malgrado nos pareça mais conveniente a todos os envolvidos.
Atente-se que a Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça prevê que pode ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de 30 dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial.
Enfatiza-se que não há necessidade de homologação da escritura em juízo, porque esse mecanismo produz eficácia desde logo, o que demonstra novamente a efetividade de seu uso, uma vez que não está sujeito a uma confirmação pelo Poder Judiciário.
Outrossim, considerando o direito fundamental de acesso à justiça, caso algum dos herdeiros ou terceiro se sinta lesado pela escritura de partilha extrajudicial, nada impede que ingresse no Judiciário, propondo ação para invalidação desse ato notarial e até mesmo buscando reparação de perdas e danos.
E se houver testamento? Haverá possibilidade de realizar-se o inventário e a partilha extrajudiciais?
Vale mencionar que o Código de Processo Civil indica que havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Então, num primeiro momento, pode-se afirmar que a opção legislativa foi pela realização do inventário judicial diante da existência de testamento para que o próprio proceda ao controle das disposições de última vontade do autor da herança.
No entanto, há situações em que o testamento não dispõe sobre questões relativas à herança, trata de alguma questão não patrimonial, por exemplo. Nessa toada, não se justifica uma obrigatoriedade de realização do inventário judicialmente, considerando que não há uma necessidade de controle de obediência a disposições testamentárias sobre a partilha dos bens. Portanto, não havendo no testamento previsões sobre a partilha dos bens, pode ser realizada a partilha por escritura pública, como forma de dar efetividade ao direito fundamental de acesso à justiça, que representa o direito de acesso à solução justa, mas não uma imposição de que a solução justa para uma questão ou conflito se dê pelo Judiciário. Inclusive, o Supremo Tribunal de Justiça se manifestou no mesmo sentido no julgamento do RESP 1.808.767. A Corte entendeu haver a necessidade de que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou se tenha a expressa autorização do juízo competente.
Ainda, temos entendimentos que mesmo existindo disposições patrimoniais no testamento, em nome da celeridade e efetividade à partilha, é possível sim a celebração do inventário extrajudicial (Enunciado nº 600 da Jornada de Direito Civil do CJF, e do Enunciado nº 16 do IBDFAM).
Importante aqui salientar que existem Estados que possuem Provimentos autorizando inventário extrajudicial mesmo tendo o de cujus deixado testamento, é o caso de Santa Catarina (Provimento 18/2017 CGJ/SC).
No tocante à sobrepartilha, a Resolução nº 35 de 2007, do Conselho Nacional de Justiça prevê a sua admissibilidade por escritura pública, ainda que referente a inventário e partilha judiciais já findos, mesmo que o herdeiro, hoje maior e capaz, fosse menor ou incapaz ao tempo do óbito ou do processo judicial.
Consequentemente, se a realização do inventário por escritura pública se mostra meio adequado de acesso à justiça, a realização de sobrepartilha por escritura também deve ser, ainda que o inventário tenha sido celebrado pela via judicial, como forma de promoção ao direito de obtenção da solução justa para o conflito de interesses.
Por conseguinte, da mesma forma que admissível a sobrepartilha, pode ser utilizada a partilha parcial por meio de escritura pública. Isso porque há situações em que não é possível proceder imediatamente à partilha de todos os bens, mas todos os herdeiros são capazes e concordes. Assim, parece possível que se proceda à escritura de partilha parcial, com a devida indicação de todos os bens, inclusive daqueles que não puderam ser partilhados de plano, e com justificativa da não realização da partilha destes.
Diante de todo o exposto, informe-se abaixo, numa apertada síntese, os requisitos a serem cumpridos para a realização da escritura pública de partilha:
- Inexistência de testamento;
- Partes capazes e presentes (ou representadas);
- Acordo entre as partes;
- Assistência de advogado ou defensor público;
- Recolhimento dos tributos;
- Lavratura de escritura pública de inventário e partilha pelo tabelião;
- Assinatura da escritura pelas partes ou representantes, advogado e tabelião.
Enfim, a Lei 11.441/2007, apesar de vigente há mais de uma década, é muito atual. De modo singelo e didático, frise-se que ela veio para facilitar a vida do cidadão e desburocratizar o procedimento de inventário ao permitir a realização desse ato em cartórios, por meio de escritura pública, de forma rápida, simples e segura.
Escrito por:
Sabrina Maia de Oliveira do Amaral
Advogada especialista em Direito de Família e Sucessões.